A livraria do monsieur Dentu, na loja 13 da Galérie D'Orléans, Palais Royal de Paris, na manhã de 18 de abril de 1857, apresentou movimento incomum. Por três francos, estava sendo lançado "O Livro dos Espíritos", de Allan Kardec, pseudônimo do professor Denizard Hippolyte Léon Rivail, após mais de três anos de tratos e investigações, via mediúnica, com personalidades já mortas. O documento, iniciado com a pergunta "O que é Deus?", ao completar 150 anos, o tempo de vida da filosofia espírita, trouxe uma temática que, embora originária de fenômenos naturais, enfrentaria caminhos tortuosos, até atingir o estágio de aceitação, pelo menos no Brasil.
A explosão da literatura que trata desses fenômenos - mais de 8 milhões de livros vendidos em um ano - surpreende pelo seu volume e explica a entrada nesse mercado de novas editoras, cujo número já é estimado em 180. "As pessoas estão mais livres e querem exercitar o raciocínio, buscar explicações", afirma Wilson Frungilo, presidente do IDE-Araras (SP), editora que, desde sua criação, em 1963, vendeu quase 7 milhões de livros de Allan Kardec.
Seja pelas repercussões libertárias do iluminismo ou pelos frutos institucionais que emergiam da Revolução Francesa, a despeito do golpe de Napoleão III (1851), que fez retornar o império, Rivail decidiu enfrentar o desafio das "tables tournantes et les esprits frappeurs" (mesa-branca, numa tradução livre) que se tornaram comuns nos principais centros europeus. Educado na escola de Pestalozzi, em Yverdun, Suíça, Rivail teria apreendido conceitos universalistas de liberdade de crença, algo que tem atrapalhado a convivência humana e respondido por conflitos cruentos. Com visão atualizada de seu tempo, poliglota, Rivail já era conhecido no meio educacional da França. Em 1828, aos 24 anos, publicou o "Plan Proposé pour l'Amélioration de l'Educacion Publique".
A tese espírita, baseada na explicação dos fenômenos, visava a decifrar enigmas de todos os tempos quanto à sobrevivência pós-morte, enquanto a reencarnação, parte da lei de evolução, uma das bases do espiritismo, nivelaria todos em oportunidades de crescimento.
Divulgação
Aos 50 anos, Rivail foi atraído para os fenômenos por Fortier, conhecido magnetizador, que lhe falou sobre "mesas que podiam girar e andar à vontade". Em um segundo contato, o mesmo interlocutor assegurou-lhe que as mesas "não somente dançam, mas podem falar. Interrogam-nas e elas respondem", conforme relato do próprio Rivail, em documentos publicados em "Obras Póstumas" (Paris, 1890, Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas).
De frívolas, as reuniões com o educador transformaram-se em sérias. Com o concurso de duas jovens da família Baudin, Caroline, de 16 anos, e Julie, de 14, que acionavam, por atribuída ação mediúnica, uma cesta com lápis à ponta, resultando em escrita sobre uma prancheta, Rivail passou de professor a investigador. Antes, ele havia dito a Fortier que só acreditaria na afirmação do amigo vendo in loco e quando lhe provassem que "a mesa tem cérebro para pensar, nervos para sentir e pode tornar-se sonâmbula".
Realizadas na casa da Rua Rochechouart, 18, em Paris, as sessões significaram para Rivail a "revelação de uma nova lei" que ele prometeu a si mesmo "investigar a fundo". Logo descobriu que os espíritos, "nada mais sendo que as almas dos homens, não possuiam nem a suprema sabedoria nem a suprema ciência". Acrescenta que vislumbrou naqueles fenômenos "a chave do problema do passado e do futuro da humanidade. Era uma revolução total nas idéias e nas crenças existentes".
Motivo de proibições desde Moisés, que no "Deuteronômio" impõe que "nunca exista entre vós quem consulte adivinhos (...), quem interrogue os mortos", por pastorais da Igreja Católica, a primeira do cardeal-arcebispo de Reims, na França, na Quaresma de 1865, a fenomenologia espírita chega ao século XXI robustecida. Ficam para trás, no Brasil, a primeira Constituição (1824), que fixava o catolicismo como religião oficial, ou o Código Penal, de 1890, que restringia as práticas espíritas.
Fundada em 1884, a Federação Espírita Brasileira (FEB) vendeu, até 2006, 44 milhões de livros espíritas. Dona de um catálogo com mais de 400 títulos, só com as obras de Allan Kardec já vendeu 11,5 milhões de exemplares. "Em 2006 colocamos 915 mil livros para vender e neste ano deveremos chegar a 1 milhão. No primeiro trimestre vimos um crescimento de 77%, com 228 mil unidades colocadas", comemora Ílcio Bianchi, diretor da FEB e gerente da revista "Reformador", publicada de forma ininterrupta desde sua criação, em 1883, um ano antes da atual editora.